3.9.15
A dificuldade de uma imagem
Ao olhar para a imagem que faz a capa do Público de hoje tenho sentimentos mistos que vão da consternação ao desejo de indiferença. A consternação advém do facto de ser mostrada numa primeira página uma criança morta, afogada, numa praia qualquer. A mim não me dói especialmente que essa praia seja num país europeu porque isso são leituras políticas que retiram daquela imagem outros significados que não os da própria imagem. O desejo - mal conseguido - de indiferença resulta, por um lado, de não querer ver naquele estado uma criança pouco mais nova do que o meu filho mais novo e, por outro, de não querer confrontar-me com o drama que está por detrás da própria imagem.
Não tenho bem a certeza de concordar com a justificação dada pelo Público no seu editorial para a publicação da fotografia porque também quanto a isso tenho sentimentos mistos: se vejo com um interesse, chamemos-lhe social, que a foto seja publicada, julgo que há inevitavelmente aqui uma dose de sobreexposição que alimenta sedes com as quais não concordo e me repugnam.
Pergunto-me se imagens como esta são capazes de fazer despertar correntes solidárias, ajudas efectivas, consciências colectivas para o drama dos refugiados ou se, depois do breve choque que provocam, acabam por cair no esquecimento dos dramas humanitários que sabemos sempre terem existido ao longo da História e que acreditamos serem mais ou menos inevitáveis consoante os tempos vividos.
Não tenho uma resposta para mim próprio, nem consigo resolver as contradições internas que experimento ao ver esta imagem, tal qual acontece quando vejo as chacinas perpetradas pelo regime sírio, pelo EI ou o genocídio do Ruanda. Por muito que tente ser solidário (seja isso o que for), há um mundo inteiro que me separa dessas realidades, que me faz ser absolutamente incapaz de as compreender e, ainda menos, de contribuir para a sua resolução. Ou será que estou enganado e conseguiria, mantendo a vida que levo, ajudar efectivamente de alguma forma que não apenas através de alguns euros depositados numa conta bancária qualquer criada especialmente para o efeito?
Imagens como esta trazem-me à consciência o egoísmo em que vivo, desatento (por muito que ache que não) das misérias do mundo, com um sentimento de impotência para mudá-las por pouco que seja. Essa consciência gera desconforto e simultaneamente um sentimento de culpa por não querer olhar, não querer saber, não querer perceber como ajudar a resolver.
Afinal de contas, talvez esta imagem tenha contribuído com alguma coisa positiva. Talvez ajude, de facto, a despertar consciências e a mudar alguma coisa. Ainda assim, mantenho uma reserva relativamente a tudo isto e tenho para mim que, na voragem dos dias, isto não passa de uma imagem de choque e pavor que rapidamente será esquecida.