27.4.18
Escritos
Punha-me a pensar sobre a questão das escutas e da sua divulgação e não conseguia decidir sobre se estava ou não de acordo. Se por um lado me fazia impressão a divulgação de tudo aquilo e atentava contra a reserva que entendo dever existir quanto à vida privada de cada um de nós, por outro o que está em causa diz, efectivamente, respeito a todos, extrapolando em muito a mera esfera privada dos envolvidos.
Se pensarmos que muitos milhões de portugueses - quase todos, na verdade - nunca viram nem têm noção do que é um milhão de euros, ver e ouvir esta gente trocar favores e proteger-se mutuamente a troco de dezenas, centenas e milhares de milhões, deve-nos indignar a todos. É tempo desta gente perceber que não pode estar acima dos outros, como aliás sempre aconteceu, e que também está sujeita à justiça e aos códigos penais e a todas as leis que se lhes apliquem.
Mas não pode ser a sede de vendetta que justifica a divulgação das escutas e dos depoimentos porque isso seria combater um mal com outro mal, por motivos errados e vis. É verdade que mete nojo o que esta gente fez (e ainda faz), mas o tempo do pelourinho já acabou e todos nós temos a obrigação de lutar pela dignificação da pessoa humana, seja ela quem for e independentemente do que tenha feito. Existem tribunais para julgar, sendo que as sessões são públicas, pelo que quem quiser que assista ao que lá se passa. É assim e deve continuar a ser assim nas sociedades democráticas.
Se não é, pois, uma questão de vendetta, a justificação para a divulgação só pode estar no interesse público, sobre o qual muito se tem falado por estes dias. Houve, assim, três factos que me ajudaram a estabilizar uma posição sobre este assunto: a discussão havida no programa Prós e Contras da rtp1 (no âmbito do qual apenas um jornalista defendeu a divulgação dos depoimentos), uma crónica do João Miguel Tavares no Público e um artigo de opinião do Ricardo Costa no Expresso on-line chamado "Isto não é não jornalismo", que deixou infelizmente de estar acessível a não assinantes.
De facto, o que está em causa é de tal envergadura e tão estruturante do ponto de vista da forma como as teias sociais, económicas e políticas estão construídas no nosso país, que não pode senão concluir-se que existe verdadeiro interesse público na divulgação dos depoimentos.
É evidente que toda a gente tem uma opinião sobre a culpabilidade de Sócrates e que, se ele for absolvido em tribunal por falta de provas, será extremamente difícil acreditar que o sistema judicial fez o trabalho tal como devia e que não falhou rotundamente. Mas, convenhamos, isso já acontecia antes da divulgação dos interrogatórios e é assim quase desde o início, até porque, mesmo antes do início, já muita gente achava que Sócrates, Salgado, Bava et al. eram corruptos. Não foi portanto esta divulgação que operou uma mudança na opinião pública. Ela só aprofundou o conhecimento sobre as matérias em discussão, o que é de um valor colectivo inestimável.
Daí eu achar que, como sociedade, só temos a ganhar com toda a informação que possamos conhecer oriunda de todos estes processos que envolvem a gente que povoa as cúpulas do poder social, político e económico do nosso país. Repito que não é para os humilhar - sendo embora verdade que essa tentação está sempre presente - mas sim para tornar a nossa sociedade um pouco mais horizontal, assim contribuindo de algum modo para que o sentimento de impunidade que muitos têm e acalentam há dezenas de anos se aplaque de vez. Para que Portugal dê oportunidade a todos em igual medida, deixando de reservar uns poucos muitos lugares de topo para os muitos poucos que a eles parecem destinados, pilhando à grande e despudoradamente, cavando maiores injustiças sociais e económicas, retirando do todo que a todos era destinado para benefício dos poucos que dele fazem proveito.
Acho mesmo que a SIC fez bom jornalismo e estou hoje plenamente convencido de que a divulgação que foi feita contribuiu na sua medida para destapar mais um pouco do véu da desvergonha com que muitos andam tapados.
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