5.5.15

Deamblogações matinais


Hoje comemora-se o Dia da Língua Portuguesa e da Cultura nos países da CPLP. Mas hoje, em vez de comemorar, existem razões mais do que suficientes para lamentar e estar de luto por aquilo que têm feito à nossa língua escrita (já não digo falada porque essa é abastardada as mais das vezes, sendo que o AO o que pretende é, precisamente, aproximar o escrito do falado, num movimento que, a meu ver, também, et pour cause, abastardiza e de que maneira a própria língua).
Depois de inúmeras tentativas goradas ao longo dos anos para consensualizar o que não é (e ainda bem) consensualizável - a língua dos países lusófonos -, chegou-se à imposição por via legislativa do acordo de 1990, após se perceber que havia e ainda há países que não o ratificaram (Angola e Moçambique). Se, num primeiro momento que durou muitos anos, a ratificação por todos era um requisito obrigatório, deixou de o ser, a partir do momento que se ficou com a certeza que esse consenso não existia. Nada, portanto, que a lei não resolva, mesmo que isso vá contra o espírito (eventualmente presente) de 1990.
Hoje, em Portugal, depois de o AO ter sido declarado obrigatório em 2011 e a escassos dias de terminar o período transitório durante o qual aquele foi sendo introduzido nas escolas, o Governo, num novo movimento de total insensatez, prepara-se para penalizar estudantes se os mesmos não escreverem de acordo com o acordo. Se os mesmos preferirem "peremptório" em vez de "perentório", "recepção" em vez de "receção", "adoptar" em vez de "adotar", "pára" em vez de "para", "pêlo" em vez de "pelo", "correcto" em vez de "correto" e assim por diante.
Nunca como actualmente se viram tantas incongruências nos documentos oficiais, nas legendas dos filmes, nos genéricos televisivos, nas notas de rodapé dos telejornais. Nunca como hoje se viram tantos e tantos erros nos jornais, por vezes nas mesmas crónicas ou notícias em que palavras aparecem escritas de forma diferente. Nunca como hoje a incongruência foi tanta até chegar ao puro disparate de, há dias, ter ouvido alguém conhecido dizer que escrevia algumas palavras nos termos do acordo e outras "à antiga".
Absurdo total.
Apraz-me ser por vezes surpreendido (ainda... e por quanto tempo?) e pegar em livros novos e acabados de editar, em que o português é correcto com "c" e não há uma nova língua que torna muitas vezes difícil a própria compreensão do que se quer dizer (para além de chocar quem lê), mas isto é cada vez mais raro e, quais personagens estranhos votados a uma espécie de gueto cultural, quem escreve bem tem, hoje em dia, de indicar que "escreve de acordo com a antiga ortografia" (!). Ora, eu não escrevo de acordo com antiga ortografia, coisa nenhuma! Escrevo de acordo com a ortografia correcta com "c", sem incorreções ou coisas do género.
Sempre se dirá que, em 1911, quando se retirou o "ph" e o substituíram por "f" e o mesmo, respectivamente, com o "y" e "i", se avançava no que hoje é a norma e na altura era o diabo. Mas é falso esse argumento. Nunca como com o AO se foi contra a etimologia, fazendo desta tábua rasa, relegando-a para um plano mais do que secundário, terciário ou ainda mesmo menor. Quem escreve "perentório" não percebe, nem pode!, de onde vem a palavra, pelo que tem mais dificuldade em percebê-la, em compreendê-la e, também, em escrevê-la.
Mas todos estes parecem argumentos menores quando o que interessa é aproximarmos a escrita da fonética, desrespeitando em absoluto a verdade mais elementar de todas, que é a de que a fonética anda incomensuravelmente mais depressa do que a escrita e precisa desta para se ancorar, sob pena de as línguas deixarem de o ser e passarem a ser, irremediavelmente, uma imensa manta de retalhos.
É, inexoravelmente, isto que vai acontecer com o português. À boleia de uma suposta e mal vendida ideia de uniformização que tudo iria facilitar, está-se a dar cabo de um património material e de extrema importância, o que empobrecerá em definitivo e sem volta a nossa cultura e a nossa História.
Hoje é, por tudo isto, um dia de luto nacional. Pela nossa língua e por aquilo que estão a fazer com ela.