18.8.22

Ecos de Massilia

Marselha, antiga Massilia. Pólo de entrada de milhões de muçulmanos, sobretudo desde a década de cinquenta do século passado e sobretudo vindos da Argélia. Mas não só: Argélia, Tunísia, Marrocos, Camarões, Itália, Turquia, Espanha, Portugal, Roménia e Madagáscar, são estes os principais países de emigração para esta cidade, o que faz dela uma combustão de raças e modos de vida muito diferentes. De todo o modo, a Argélia ganha por mais de quatro vezes ao segundo país, o que mostra bem o peso que representa. E isso vè-se muito bem.

Chegámos de carro vindos da montanha, depois de dois dias passados no sopé dos Alpes, com muito pouca densidade populacional e uma relativa calma, mesmo tendo em conta que estamos em pleno período de férias. Ao entrar em Marselha, duas circunstâncias se impuseram de imediato: o calor sufocante não apenas pela temperatura elevada mas também pela pesadíssima taxa de humidade e o caos absoluto. Caos. Absoluto. Milhares e milhares de pessoas na rua, a andar, a correr, a vender, a comprar, a fumar, a conversar, a roubar, a conviver, a dançar, a tocar, a traficar, a comer, a beber, a conduzir, a gritar. Tudo isto debaixo de um calor de ananases sufocante e abrasador, sem que ninguém aparentasse importar-se.

Porto velho. Local de chegada e partida para outro continente ou tão-só para ir visitar o chateau d'If. Na baía convivem os ferrys portadores da populaça e os barcos particulares atracados na marina, uns maiores do que outros, mas todos portadores daquela patine tão própria do que é ligado à náutica, com os proprietários a condizerem, como se estivessem em qualquer outro lugar e rodeada de qualquer outra gente. Mas é de facto uma outra gente porque aqui, ao contrário do que se vê na Côte d'Azur, a marina está fortificada e separada do resto por um sistema de gradeamento reforçado por seguranças bem encorpados que se encarregarão de deter quaisquer intenções menos óbvias. "Cá fora" o reino do caos impera. Ninguém respeita os sinais de trânsito, nem sequer os sentidos da circulação. Há miúdos imberbes a conduzirem motos, carros a transbordar de pessoas, buzinas em constante movimento. Tudo isto ao mesmo tempo que, a menos de 3 metros, pessoas comem em esplanadas construídas para turistas, umas com melhor aspecto do que outras, mas todas infernalmente envoltas na confusão. E sujidade. E mau cheiro. Tudo isto convive pacificamente, como se nada disto conflituasse com os restantes elementos. É muito esquisito ver isto numa cidade europeia, mas assim é em Marselha. 

Claro que, embora estando geograficamente situada na Europa, a cidade não parece obedecer aos hábitos e regras europeus, mas sim aos do Maghreb, afinal o local de origem mais ou menos remota de parte muito signitficativa da.sua população. E, na verdade, para quem conhece o Maghreb, não existem diferenças muito assinaláveis, a não ser a presença de mais ocidentais brancos que, no entanto, são engolidos por uma azáfama que lhes é naturalmente estranha. Há muito que oiço e leio o que politicamente se diz e escreve acerca da presença muçulmana em França (com destaque para Paris e Marselha), mas confesso que nunca me tinha apercebido da sua dimensão. Não há aqui qualquer preconceito relativamente a este tema, apenas uma tentativa de descrição objectiva do que vi. De facto, se por momentos nos esquecêssemos de onde estávamos, diríamos estar num qualquer país árabe. Não se ouve falar francês nas ruas principais junto ao porto velho. Em contrapartida, ouve-se árabe como em Marrocos ou na Tunísia, vêem-se mulheres de niqab ou hijab, tipicamente em grupos ou acompanhadas por homens árabes, e estes, como também é normal nesses países, em grandes grupos a fumar ou conversar. A certa altura, numa avenida larga que sai do porto para cima, tive a sensação de estar em Jemaa el-Fna tal era a confusão de pessoas, odores e sons.

Nem sempre é confortável porque, ao contrário do que acontece num país árabe, aqui nunca se sabe bem se o transeunte com quem nos cruzamos nos olha fixamente nos olhos porque isso faz parte da sua cultura ou porque, aproveitando-se disso mesmo, se está a preparar para qualquer outra coisa. Talvez seja exagero meu, mas esta sensação acompanhou-me por diversas vezes, enquanto que num país muçulmano tal nem me passa pela cabeça. Andamos, pois, por entre toda esta gente e confusão, olhando para lojas ocidentais que dão paredes meias com restaurantes de kebabs e lojas de sumos naturais ou de venda de bric à brac.Não dá para classificar com exactidão. A certa altura metemos por uma rua que pareceu (e era) um local de tráfico muito semelhante a uma rua que sai da praça do Intendente em direcção aos Anjos. Tarde de mais, já lá estávamos e não havia retorno sem dar bandeira. Ignorámos as constantes tentativas de venda e virámos à esquerda. Escassos cinquenta metros à frente, uma boutique da Nespresso! Sem palavras.

No meio de toda esta gente, entre a qual também se avistavam turistas como nós, comentávamos que não se viam franceses brancos que parecessem habitantes locais, pelo que a questão era pois onde é que eles andavam, se é que andavam. Subimos então ao último andar de um edifício parecido com o S. Jorge mas maior e renovado, onde se anunciava um restaurante. Ficámos, então, uma vez mais espantados com o que vimos. Gente muito sofisticada a jantar ou a beber um copo, num final de tarde abrasador, com uma vista de quase 360 graus sobre a cidade. Muçulmanos, com excepção de um ou outro a servir, não vi nas duas vezes que lá fomos. Falámos então sobre onde andaria esta gente durante o dia e como é que conviveria com os seus concidadãos com os quais julgo pouco ou nada partilharem a não ser a mesma cidade. (e será mesmo a mesma?) A diferença é abissal. Estou a falar de adultos de meia idade e mais, visivelmente endinheirados, bem vestidos, a cheirar a perfume, talvez parte deles ligados às artes ou a profissões liberais. O contraste não podia ser mais gritante. Aqui em cima estava-se numa boa e fina casa de Paris, ali em baixo numa versão de terceira de uma qualquer praça muçulmana. É Marselha.

Talvez por causa deste caldo cultural, os franceses que servem nos restaurantes e nos hotéis ou os que estão em museus, são muito mais simpáticos do que os de qualquer outro lado por onde tenhamos passado. Incomparavelmente mais simpáticos. Também aí Marselha parece diferente do resto.

No fim, sei que gostei muito mas não consigo perceber bem porquê. Talvez porque me atraia a mescla de gentes e culturas e defenda que é muito mais valioso um lugar onde todos contribuem para o todo do que aqueles aonde impera uma única forma de viver. Porém, tenho clara noção de que isto é cândido porque, pelo menos em parte da cidade, pareceu-me existir claramente uma cultura dominante e outra dominada ou, no mínimo, com pouco espaço para se expressar de tão avassaladora que a outra é. Não sei se existe ali algum equilíbrio pacífico e aceite por todos. Fiquei com essa curiosidade que não consegui saciar por não conhecer ninguém pessoalmente que ali viva ou tenha vivido. No entanto, se atentarmos a dados objectivos, ficamos a saber que Marselha é a décima quarta cidade mais perigosa de França, sendo que é a segunda maior, o que nos diz muito sobre o carácter relativamente pacífico da sua sociedade. Isso pode, de facto, ser sinal de um certo equilíbrio e de uma verdadeira tolerância para com outras culturas e se assim for é espantoso. Porque foi com espanto que lá entrei e de lá saí.