O cenário é sempre o mesmo. Filas de pessoas com as raspadinhas, totoloto, totobola, lotaria e o que mais exista para meter e ver se a sorte lhes sorri. Acontece é que a sorte muito raramente está para aí virada e nunca lhes sorri. Aliás, a sorte, que é uma eterna aliada de quem gere o jogo, sorri mas não a quem gostaria de receber o seu sorriso. Sorri à SCML que é a entidade concessionária deste tipo de apostas. A essa sorri de boca escancarada, mostrando os dentes brancos e bem escovados. Aos restantes, àqueles que nele apostam a pensar que é desta que lhes sairão uns cobres, mostra que, por debaixo da dentadura alva e novinha em folha, se escondem uns dentes podres, cariados e mal-cheirosos.
Eu confesso que me sinto na fila da sopa dos pobres, embora, felizmente, por engano. Vou com os jornais debaixo do braço (coisa menos do que rara nestes tempos) e tenho de ficar à espera uma eternidade para que os jogadores joguem, metam as apostas, raspem, paguem e resmunguem. No fim, têm sempre um brilhozinho nos olhos de esperança, como se desta é que é, agora é que vai sair, nas outras milhares de vezes perdi sempre mas agora tudo vai mudar e um lampejo de bom augúrio é tudo o que preciso para ficar rico.
Pobres. Sobretudo de espírito. Não, não ficarão ricos nem a sorte irá sorrir-lhes. Pelo contrário, a sorte sorrirá - aliás, já sorriu porque já lá entrou o dinheirinho das apostas - à SCML, como sempre, a qual, mesmo depois de pagar os poucos prémios que saem por esse país fora, continuará com os cofres cheios de euros à conta dos pobres. Talvez agora, com parte a ir para a conservação do património, não estejam tão cheios como já estiveram, mas mesmo assim.
A mim faz-me confusão e sinto, para além de pena, uma enorme revolta que não consigo bem explicar. Revolta porque é tão evidente que aquelas pessoas estão enganadas sobre o seu próprio destino como é verdade que o sol nascerá amanhã outra vez. E como é que não sabem isso? Como é que não percebem que mais falta lhes faria ler um jornal do que apostar numa raspadinha? Como é que não sabem que mais importante seria irem a um museu do que jogarem no loto? E, dentre toda essa gente, quanta fará contas ao que gasta semanal, mensal e anualmente no jogo? Quantos euros poderiam estar a ser canalizados com maior proveito?
Eu hoje não aguentei e descarreguei sobre a senhora do quiosque. Como é possível que quem queira comprar um mero jornal tenha de se sujeitar a minutos intermináveis na fila por causa dos agarrados ao jogo? Como é possível que não dêem prioridade a quem não demora mais do que 45 segundos a aviar-se e dar lugar ao próximo?
Enfim, é assim mesmo. Diz-me o grilo para estar calado e não deixar de comprar os meus jornais. Não são uns minutos de espera e incompreensão que poderão fazer mossa no que tive a sorte de aprender de pequeno e que, depois de muitos euros gastos sim ao longo da vida, me ajudou a capitalizar o, ainda que pouco, conhecimento que vou tendo do mundo que me rodeia.
Alea jacta est.