29.10.16

Escritos


As coisas são mesmo assim. Da mesma maneira que não se dá valor à saúde quando ela existe, de igual forma só se sente a importância de quem é verdadeiramente importante quando desaparece.
É assim com João Lobo Antunes, mesmo para quem nunca o conheceu pessoalmente, como é o meu caso, e apenas o ouviu ou leu.
Diziam-no vaidoso e até arrogante e eu não sei se isso é verdade ou não. De todo o modo, não acho que isso seja o mais importante e, até, nem sequer importante, porque o que fica são as atitudes, o pensamento e as palavras. E é quanto a estas que quero dizer o que segue.
Perdi a última entrevista de JLB ao Expresso (AQUI), não sei bem porquê, talvez por desvalorizar em demasia o que é importante. Pude lê-la ontem, logo de manhã, pela primeira vez e fiquei profundamente comovido. Não porque esteja com uma espécie de nostalgia pela pessoa, que, repito, nunca conheci e, nessa medida, não lhe sinto a falta, mas porque é raro, cada vez mais raro, ler-se e ouvir-se o que ali foi escrito e dito.
O humanismo, a reflexão, a humildade, o reconhecimento dos limites, da finitude e da incompreensão da vida, a aceitação de que nós não controlamos nada ("acho que fui mais um barco de papel deitado ao rio do que um barco com remos a tomar uma direcção. Deixei-me ir na corrente das coisas que me aconteciam.") são verdadeiramente marcantes.
Para além disso, há um jeito que é antigo, no sentido em que liga àquilo a que hoje em dia se liga pouco ou mesmo nada, que enjeita a espuma dos dias porque ela não significa nada de verdadeiramente importante, que adopta uma postura contemplativa e reflexiva, crítica e distante, dos "valores" reinantes nos dias que correm. E é quanto a isto que, isso sim, sinto uma grande nostalgia porque vão, pouco a pouco, desaparecendo os homens e as mulheres públicos que adoptam uma visão assim.
Deixo algumas passagens que considerei mais impressivas disto que digo, sem mais, porque não é preciso dizer-se mais.

"Tenho refletido sobre a alteração da medicina, sobre a razão por que estamos cada vez mais longe dos doentes. E estamos afastados dos doentes pela intersecção das diferentes tecnologias, pela pulverização do saber, pelos múltiplos especialistas que são chamados a cuidar de alguém. Aquilo que era uma relação única, um a um, perdeu-se.
Compasio é mais do que a simples empatia, vai mais fundo. E cada vez mais interessa às neurociências, pois parece que o nosso cérebro está equipado para sentir compaixão, ou seja, para viver o sofrimento do outro. Apesar do progresso, e ainda mais numa especialidade altamente tecnológica como a minha, nunca vi, não conheço arma nenhuma, de qualquer natureza, seja medicamentosa seja instrumental, que faça anular a necessidade da compaixão.

Pensava que a morte ou a incapacidade eram uma derrota quase pessoal. Trabalhei uns anos, ainda era menino médico, numa casa de saúde de freiras, uma casa psiquiátrica onde havia muitas mulheres com processo de demência e declínio mental. E eu queria mantê-las vivas a todo o custo. Já para as freiras, se elas morressem, era uma alma que ia para o céu — uma alma imaculada por não ter sequer o equipamento do mal para cometer o pecado. Com o tempo, a pessoa-médico que sou foi aprendendo a não lutar contra a natureza. Foi uma descoberta consoladora e tranquilizante.

O desrespeito pela verdade, a violência dos termos, o estarmos longe daquilo que alguém chamou de ‘democracia humilde’, aquela que aceita o ponto de vista do outro, ouvindo-o. Fernando Gil falava muito da má-fé, que é um sentimento relacional e significa que a nossa posição está tomada antes de ouvirmos o argumento do outro. Passados os 70 anos tenho pena de estar a viver este tempo. (...) Sim, um tempo de má-fé. (...) A liberdade e a democracia são uma espécie de oxigénio, que serve para respirar num tempo tão complexo como o nosso. Mas é preciso mais, é preciso construir. E temo que isso não seja possível com a polarização do debate, com a falta de respeito por um sentimento tão simples e elegante como é a decência.

A medicina fez-me médico. Nós aprendemos o básico, a parte artesanal da profissão. É onde muitas vezes falhamos, embora eu tenha sido muito bem educado. Aquilo em que me tornei é uma demonstração brilhante da virtude da educação, do que chamo o ‘currículo silencioso’, que passa por osmose, informalmente, em sítios tão diversos como o restaurante do hospital ou o serviço de urgência. Se eu quisesse apontar a minha qualidade maior, o meu maior talento, diria que fui sempre um bom aluno. Até ao dia de hoje, em que comparo a minha experiência como doente com o que observei ao longo da vida e tento aproveitar isso para a minha melhoria, para a minha tolerância, e até para outra coisa sobre a qual tenho escrito muito que é a esperança.

No meu caso, saber como sou na doença. E eu diria que tenho a necessidade de manter um certo pudor, de não me despir completamente e de conter o medo. Quando adquirimos uma certa prática em ouvir a narrativa, percebemos que nem sempre é útil destapar o medo. Às vezes é melhor abordá-lo pela porta do fundo. (...) Porque falar do medo torna-o real. E se não falarmos nas coisas elas não assumem uma realidade tão dolorosa. Podemos usar até o argumento da autoridade, que hoje caiu de moda, e dizer: “O senhor não vai sofrer porque eu não vou deixar”. Eu disse isto ao meu pai. De forma velada, estava a dizer-lhe até onde iria para ele não sofrer. Ele era um homem muito orgulhoso da sua coragem física e ficou tranquilo.
A vida normal é um caos desorganizado de projetos, emoções, sentimentos, interesses culturais, familiares, profissionais. Nós vivemos nesse caos. O que faz a doença? Arruma o caos. Fica tudo dominado por uma voz, um cântico monótono. Um cantochão que destrói aquilo que é a vida.
A esperança é um sentimento. Pascal trata-a como um privilégio dos cristãos. E a gestão da esperança é uma das coisas mais difíceis na prática médica, do ponto de vista ético e moral. A esperança prolonga-se num tempo em que vão acontecer coisas melhores. Estamos a viver uma experiência que nos derrota e faz sofrer, e vamos projetando no tempo a transformação dessa vivência em algo que é bom e que nos traz felicidade. Se forem pequeninos pacotes de felicidade já não é mau. Naquilo que eu faço, ou fazia, a esperança está ligada ao desfecho de uma luta. A existência dessa luta alimenta a esperança, baixar os braços mata-a. Quando a pessoa acha que vai ficar melhor, isso ajuda o processo de cura. Portanto, o pessimismo é uma profecia que se cumpre.
Tentei passar às minhas filhas o sentimento de terem uma rede, de que sempre que elas caíssem eu estaria cá em baixo para as segurar. Acho que o que elas sentem em relação ao pai é uma extraordinária segurança. E tolerância. Cada uma fez o que lhe apeteceu. Há uma frase de Tolstoi que gosto muito de citar: “Tout comprendre c’est tout pardonner.” Esta foi a divisa na relação com as minhas filhas."