28.6.16
Escritos
Será que nada fazia, de facto, prever o resultado do referendo no RU?
Quando Cameron, numa atitude de irresponsabilidade total, prometeu o referendo para ganhar as eleições para primeiro-ministro, estava, de facto, convencido que não ganharia as eleições por maioria absoluta (como aconteceu) e que, eventualmente coligado com os LibDem, fosse "forçado" a deixar cair o referendo tendo em conta a velha inclinação europeísta desse partido.
Mas isso não passa de fogo fátuo, porque o que está na base do voto britânico é muito mais complexo, conforme têm dito tantos e tantos entendidos, e passa por um enorme descontentamento social que vem grassando ao longo de décadas durante as quais parte do RU sempre se considerou afastada da UE, talvez vindo ao de cima algumas características dos ilhéus, e começou a não tolerar a chegada massiva da imigração que, conjuntamente com a deterioração das condições de vida das classes médias (que pouco ou nada tem que ver com a vaga imigrante), foi contribuindo para um sentimento crescente de descontentamento.
O que a mim me preocupa é a fissura que foi criada no RU, opondo de um lado os remainers e do outro os exiters. Dir-se-á que seria sempre assim tendo em conta o próprio objecto do referendo, mas neste caso foi muito pior e as consequências são potencialmente mais devastadoras, tendo em consideração a distribuição dos votos. Sucede que as populações mais jovens votaram massivamente no remain, ao passo que as mais velhas preferiram a saída e essa circunstância de per se está a criar um desentendimento geracional grave, inclusive entre membros da mesma família, que pode levar a fracturas irreparáveis, porque afectam irremediavelmente a coesão nacional que, entre outras coisas, contribui decisivamente para a identidade de um povo. Veja-se, a título de exemplo, este artigo do Guardian: http://www.theguardian.com/lifeandstyle/2016/jun/27/brexit-family-rifts-parents-referendum-conflict-betrayal
Ora, a mim espanta-me que um primeiro-ministro não tenha sabido ou conseguido antecipar este efeito - para não falar de todos os outros, designadamente económicos - e, levianamente, tenha brandido o tema da saída da EU como um tema comum, de política diária, quase comezinha. É que não é, de facto, assim. O que Cameron fez revelou uma tremenda falta de conhecimento do povo britânico e dos (des)equilíbrios em que o mesmo assentou durante dezenas de anos. Ele demonstrou que não sabia que, com excepção da Escócia, Irlanda do Norte e Londres, o resto do país estava maioritariamente descontente. Sim, descontente, porque eu estou firmemente convencido que, em muitos casos, este foi um voto de protesto. Protesto pela falta de emprego, pela deterioração das condições de vida, pela falta de oportunidades, pela exclusão que sentem milhões de pessoas face aos destinos do seu próprio país. Pois esta foi a oportunidade que tiveram de mudar alguma coisa, mesmo que para pior. O futuro o dirá.
O desconhecimento de tudo isto é absolutamente inconcebível para alguém que lidera um povo. Que a raínha não saiba ao certo o que se passa nas Midlands ainda vá que não vá, mas que o primeiro ministro siga a mesma ignorância, é inaceitável.
Mas, dito isto, a verdade é que esta versão é, apesar de tudo, a menos má. Porque a pior é a que Cameron tinha plena consciência do que estava a fazer e, ainda assim, fê-lo sem qualquer pejo. É que, nesse caso, deixamos de estar no terreno da negligência grosseira e entramos no do dolo. Há, de facto, quem defenda que tudo isto se deve a uma guerra intestina entre ele e Boris Johnson, vinda dos tempos de Eton, em que ambos tinham determinado como meta de vida chegarem a primeiro ministro. Pelo que, se porventura, mais ou menos reconditamente, a potencial desagregação do RU tem a sua raiz no puro ego, então pouco ou nada haverá a dizer porque isso ultrapassa, pura e simplesmente, toda e qualquer capacidade de análise (que não a psicanalítica, bem entendido).
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