12.2.16

Escritos


Sinto-me no lodo neste momento delicado (mais um) da nossa vida política. Pergunto-me por que motivo António Costa entrou a pés juntos e desfez a única coisa intangível - e, por sinal, a mais importante de todas - na relação com os mercados: a confiança. Porque é que teve de ser anunciado que iriam ser repostas as 35h quando estão a ser feitos estudos sobre o impacto de tal medida, dando assim a ideia de que a mesma poderá nem avançar? Porque é que se teve de reverter o processo de privatização da TAP se o Governo não terá qualquer intervenção na gestão diária da empresa (e sim, apenas, em decisões estruturais)? Porque é que o salário mínimo teve de ser aumentado à pressa e com a promessa de o fazer subir até aos € 600,00 em 2019? Porque é que foram eliminados os exames das escolas? Eu sei que esta não é uma conversa bem quista, que não é popular, que todas estas medidas, assim como outras tantas, fazem parte de um pacote para repor direitos e regalias a que os portugueses têm, alegadamente, direito e sem os quais se sentem espoliados. Eu sei que até Pacheco Pereira afirma que querer o regresso de tudo isto não é querer demais, mas sim exigir o mínimo básico a que todos temos direito como povo que somos de uma verdadeira sociedade democrática. E também sei que o caminho que António Costa está a trilhar é visto por alguns - penso que por cada vez menos - como a vitória do primado da política sobre a finança, vergando esta a opções políticas que dimanam do voto democrático.
Só que... em primeiro lugar, acho discutível que se defenda que este OE é a tradução prática possível do que estava inscrito no programa do governo, uma vez que, simplesmente, tal programa... não era de governo, mas sim do PS que, relembremos, não ganhou as eleições e teve de transigir numa série de medidas a contento do BE e do PCP. Em segundo lugar, lamento dizer, e defender, que este caminho não é, de facto, legítimo. E não é porque Portugal, por muito que custe, deve - repito, deve - milhões e milhões de euros aos seus credores, sem que exista uma expectativa de os vir a pagar conforme se obrigou, se se mantiver numa trajectória de défice excessivo e com um crescimento simplesmente apático como se tem verificado. Eu também percebo que este é um argumento estafado e que há muita, muita gente que não gosta de ouvi-lo porque entende que o TINA não é bem TINA, mas um TINA à portuguesa, i.e., ok, é TINA mas dá-se um jeito porque ora se paga mais tarde, ora se vai pagando, ora se não paga. Afinal, não foi Sócrates que disse que a dívida não é para pagar, mas para ir gerindo?
Mas, meus senhores, não é bem assim. Do outro lado da mesa, os nossos credores não alinham bem neste nosso desenrasca do "parece TINA mas não é bem TINA". Do outro lado estão Estados soberanos, fundos de investimento, particulares e instituições bancárias para os quais o pagamento deve ocorrer a tempo e horas, porque não se trata aqui de nenhuma brincadeira e não há lugar a perdões ou adiamentos, a não ser, claro, que ganhem com isso. Assim sendo, moratórias e incumprimentos apenas agravarão o fosso e jamais aliviarão o esforço necessário.
Adoraria concordar com Pacheco Pereira e com todos aqueles que defendem que "há sempre alternativa" porque a democracia tem, em si mesma, esta beleza de permitir a escolha pela maioria do caminho que quer percorrer. Mas... e se não houver mesmo alternativa? Se o caminho percorrido até aqui pelo nosso país tiver estreitado de tal maneira as opções que impossibilita qualquer outra via que não a do cumprimento mais ou menos cego dos critérios do défice e do pagamento a tempo e horas das nossas obrigações creditícias?
"É a realidade, estúpido!", como dizia o outro, mas dizia-o bem, desgraçadamente bem, porque desconfio que há vezes em que, por mais que queiramos, não existem alternativas à realidade. Quando temos uma bateria de credores externos, todos alinhados e atentos ao nosso comportamento, e começamos a demonstrar querer arriscar. mesmo que legitimamente (e dou de barato que António Costa não tenha ganho as eleições), temos de aceitar que os mesmos não estejam dispostos a pagar o risco. E tudo se agrava quando o cenário macro-económico é cinzento em tons de negro e não augura nada de bom, porque aí é que os credores se tornam ainda mais intransigentes, sobretudo com os pequenos como nós.
É por tudo isto que me sinto mesmo revoltado, indignado e enganado. Enganado, sim, porque este governo prometeu-nos a todos acabar com a austeridade ("virar a página da austeridade", lembram-se? Como se isso fosse possível...) e, mesmo sabendo que tal era virtualmente impossível e correspondia a uma mentira, sinto-me enganado ao ver o ministro das Finanças afirmar com a maior desfaçatez que este orçamento não sobrecarrega as famílias, nem representa a continuidade de mais medidas austeritárias. É tudo mentira. Assim como é mentira que este orçamento não seja uma manta de retalhos talhado, à vez, pelo PS, pelo BE, pelo PCP e, finalmente, por Bruxelas.
E, sim, sinto-me enganado quando oiço dizer que "viemos repor" isto ou aquilo, "viemos restituir" isto ou aquilo, como se fossem os arautos da legitimidade democrática. Mas vieram repor e restituir o quê? As famigeradas 35 horas? Mas existe algum direito divino a que os funcionários públicos trabalhem 35 horas?!Não foi legítimo tomar a opção de os equiparar a todos os outros trabalhadores deste país? Repor o quê? A indisfarçável falta de motivo para reavivar uma desigualdade? Só se for.
Meus Caros, este lodo em que nos encontramos é bem pior do que o pântano de Guterres. Este lodo vai-nos sujar e aos nossos filhos e comprometer irremediavelmente o nosso futuro como povo independente, autónomo e democrático. Porque, a bem dizer, a democracia é liberdade. E a liberdade é, entre outras coisas, o compromisso. Ora, se este não for honrado, tudo o resto se desfaz. Desgraçadamente. É assim que estamos.