9.5.07

Portugal: a arte de bem pensar e pior fazer

Tem dado brado a notícia relativa à abertura da loja jurídica do centro comercial Saldanha Residence em Lisboa.
A ideia que tanta polémica na Ordem dos Advogados (OA) tem criado é simplesmente a de prestar serviços jurídicos em locais de passagem massiva de pessoas. Isso é mau?
Nós, portugueses, somos pródigos em pensar bem: temos algumas das melhores leis existentes no mundo civilizado, temos leis e regulamentos para tudo, criamos organismos e comissões para precaver toda a espécie de "fugas" (entendidas estas no sentido de malefício do sistema). Por outro lado, o nosso sistema é, por natureza, fechado e corporativo, protegendo-se das "influências" alheias e também (hélas!) das suas críticas. Ora, em que é que isto se traduz? Numa evidente falta de espírito participativo e capacidade de mudança para melhor. Um exemplo bem vivo disto é o do recente caso da menina inglesa desaparecida: os media (que não apenas os tablóides) e a polícia inglesa não compreendem porque é que em Portugal, a polícia não pode revelar mais pormenores sobre o caso, dessa forma possibilitando a todos os interessados uma participação activa nas buscas e na sua resolução. Foram logo, a este propósito, dadas notícias sobre a forma como casos idênticos são tratados no RU ou nos EUA, em que, não apenas os media intervêm activamente na tentativa de descoberta do que efectivamente se passou, dando pistas e fazendo apelos às pessoas, como, inclusive, os paineís electrónicos das auto-estradas divulgam informações consideradas importantes (!).
Pode criticar-se esta aparente promiscuidade entre a polícia e restantes entidades da sociedade dita civil, o que, aliás, é comum em Portugal, com alguma arrogância intelectual. Mas afinal o que é que está em causa? Tão só resolver um problema. E a grande diferença entre o nosso sistema e, por exemplo, o anglo-saxónico, que é a bem dizer o mais antagónico que existe, é que para encontrar a solução para esse problema, neste último são permitidos todos os actos e a intervenção de todas as entidades de forma despudorada, sem sentimentos de elitismo ou de pertença, numa união de esforços invejável. Em Portugal, pelo contrário, apenas a polícia pode desempenhar o seu papel, estando impedida de divulgar mais do que o mínimo e o evidente (para o que, de resto, nem seriam necessárias conferências de imprensa).
Este exemplo é replicável em muitas outras matérias. Desde a justiça - no caso português, demasiadamente formal e hermética, por oposição à do sistema anglo-saxónico - à própria burocracia - o que, afinal, é a burocracia (demente, como sucede em Portugal) se não a prova da esquizofrenia e da estanquicidade do sistema? -, passando por muitos outros temas.
Ora, voltando à loja jurídica, a OA, através do Conselho Geral, veio pronunciar-se contra, referindo que tal atenta contra a dignidade da profissão e que, por isso, iria dar conhecimento formal ao Conselho de Deontologia de Lisboa para proceder em conformidade, ou seja, para accionar o procedimento disciplinar contra a advogada promotora da iniciativa.
Pergunto-me se fará sentido. Se fará sentido que numa sociedade em que uma das principais causas da entropia do sistema é o desconhecimento por parte das pessoas - destinatários últimos do próprio sistema - das regras em vigor e em que é absolutamente necessário que essas mesmas pessoas ganhem consciência dos seus direitos para poderem ser mais livre e legitimamente responsabilizadas pelas suas acções, uma das principais entidades reguladoras desse acesso - a OA - impeça uma aproximação dos cidadãos à justiça e, desse modo, pretenda impedi-los de ter mais e melhor conhecimento dos seus direitos, de uma forma simples e barata (pelo menos, mais barata do que habitualmente), com o principal argumento de que tal atenta contra a dignidade da profissão.
Não será isto perpetuar um corporativismo que, historicamente, tão mal fez (e faz) a este país? Não será isto querer à outrance manter a "sabedoria" nas mãos de alguns, não deixando que todos dela usufruam, com isso permitindo uma sociedade mais justa e igualitária?
Refira-se que a advocacia praticada nas lojas jurídicas não concorre directamente com a dos escritórios médios e grandes. Nos primeiros tempos que serão largos, ninguém que recorre a este tipo de sítios irá a uma loja jurídica para ver os seus problemas resolvidos. Com o tempo talvez isso aconteça. Se assim for, caberá aos afectados inventar uma forma de competir. Quanto ao cidadão, só tem a ganhar.
A reacção da OA é, à semelhança de outras vezes, desligada da realidade, desligada da necessidade das pessoas, pensando, ao invés, nos interesses da classe, como se a mesma fosse profundamente afectada pelo facto. Tal não me parece ser verdade. Porém, se fosse, não me chocaria, a bem do esclarecimento dos cidadãos e de uma aproximação do Direito das suas vidas, com isso contribuindo para a evolução de uma sociedade ainda tão atrasada em alguns dos seus principais aspectos.