Li hoje um artigo no NYT chamado "Cancel Culture" isn't the problem. "OK Culture" is, cujo postulado é, basicamente o seguinte: tantos dos casos que vieram a público nos últimos anos de práticas erradas, criminosas muitas delas, resultam não da cultura de cancelamento que por aí grassa, mas sim de uma cultura de complacência que, durante anos, as aceitou como normais ou senão como normais, pelo menos como admissíveis. A autora dá o exemplo de um treinador da NFL que teve durante anos práticas racistas, misóginas, homofóbicas, etc. e que, por causa do sucesso desportivo que foi tendo, foram todas aceites e desculpadas. Ou seja, pode dizer-se que, da mesma forma que nos habituámos a ver o dinheiro sobrepor-se a certos valores (da autonomia académica, à independência política e pessoal, passando pela própria crise climática), as sucessivas vitórias das equipas treinadas por aquele treinador e o retorno financeiro que as mesmas geravam abafaram, desculparam e branquearam comportamentos inadmissíveis sob qualquer ponto de vista.
No entanto, ao ler o título do artigo do NYT, julgo existir uma confusão perigosa entre o que a autora chama de "OK Culture" e a "Cancel Culture" ou cultura do cancelamento como tem sido chamada entre nós. É que este tipo de cultura é um verdadeiro problema. Eu não tenho nada a favor do racismo, da escravatura, dos maus tratos, da misoginia e por aí fora. Também não tenho nada a favor de uma sociedade estratificada com base na violência, na imposição da lei pela força e pelos mais poderosos (algo a que o mundo assiste diariamente através do poderio económico dos mais fortes) e da imposição de uma cultura sobre a outra (afinal, o que foram os Descobrimentos senão isso mesmo?). Mas não ser apologista destas coisas não significa que se ignore duas coisas: uma chamada História, no âmbito da qual se estuda e se analisa criticamente todos esses acontecimentos; outra chamada Cultura, no âmbito da qual se apreende o passado com vista a aprender e a melhorar o futuro.
Tudo isto a propósito da votação por unanimidade (!) da retirada da estátua de Thomas Jefferson do salão da assembleia legislativa de Nova Iorque, corolário de uma campanha iniciada há vinte anos. Uma comissão de peritos (?) que gere a arte pública de Nova Iorque assim decidiu, após uma proposta dos deputados municipais afro-americanos e latinos. Thomas Jefferson foi um dos pais fundadores dos EUA, fervoroso defensor da liberdade, talvez mesmo o maior defensor do que se tornou um dos pilares da sociedade americana ao longo dos séculos - a liberdade individual -, autor da célebre frase "todos os homens nascem iguais" e, ao mesmo tempo que tudo isto, proprietário de centenas de escravos negros, de quem dispunha e cujo estatuto defendeu durante grande parte da sua vida. Ficaram igualmente conhecidas as suas avançadas sobre as mulheres, a quem alegadamente destratava ou tratava com inegável superioridade machista. Era misógino e um predador sexual. Era, pois, como qualquer um de nós, uma pessoa cheia de contradições (as quais só são mais visíveis neste caso dado o papel do homem na História): ao mesmo tempo que teve um papel determinante na forma como nasceram e viriam a desenvolver-se os EUA (não sendo exagero dizer-se que, por tal razão, foi uma figura histórica de impacto mundial na nossa actual mundividência), tinha práticas desprezíveis e inaceitáveis.
Ora, o que é isto senão a riqueza da História e das estórias, que vão moldando o mundo ao correr das décadas? Ao retirar-se a estátua de Thomas Jefferson da assembleia legislativa de Nova Iorque, o que é que os cultores do cancelamento estão a fazer? É verdade que estão a afastar alguém que foi intrinsecamente contra os negros e que virtualizou a escravatura, mas não é menos verdade que estão a secundarizar quem, simultaneamente teve um papel absolutamente ímpar na História. A cultura do cancelamento luta as mais das vezes por ideias certas (igualdade, mobilidade social, fim das discriminações, etc.), mas fá-lo de maneira profundamente errada e, de resto, alinhada com o ar destes tempos de bipolarização (a favor ou contra), maniqueísmo (bem ou mal) e facilitismo (é mais fácil proibir e esconder do que educar, explicar e problematizar). Exemplos destes temo-los aos milhares por esse mundo fora e, por aqui, já há quem também queira retirar os painéis do salão nobre da Assembleia da República .
A retirada da estátua do Jefferson fez-me pensar no seguinte: a continuarmos assim, ou acabamos com todo e qualquer vestígio do nosso passado - mas, se for o caso, temos de ser radicais para sermos congruentes: acabamos com o bom e com o mau, não deixando pedra sobre pedra, porque afinal de contas por que motivo se havia deixar apenas o que alguns defendem? e quem decidiria? -, ou começamos a fazer acompanhar cada estátua, pintura ou construção mais "duvidosa" de uma explicação enquadradora para não ferir espíritos mais sensíveis.
Uma sugestão: e porque não aceitarmos a História tal como ela é (sem prejuízo de recusarmos liminarmente as práticas que no passado existiam e que a evolução dos tempos mostrou serem ignóbeis), explicando-a, problematizando-a e chamando à discussão os temas fracturantes, sem, contudo, a rever e apagar consoante o ar dos tempos?