16.11.14

Para ler lentamente

Foi ali que um dia me despi e arrastei nu pelo chão, que lambi cada lágrima chorada como se estivesse no deserto à beira da morte, que quase sufoquei de sofrimento pelo meu próprio sofrimento. Foi naquele lugar, ali, à distância de um passo de tudo o resto, que vi cair sobre mim um muro intransponível que, cruel, me disse "Acabou-se. Ficarás neste lugar para todo o resto do que te falta viver. Não conseguirás subir-me, transpor-me, partir-me. Não conseguirás voltar ao que, na verdade, nunca foste: feliz. Este é o teu fado e é nele que te corroerás até aos ossos". E chorei, já sem lágrimas, já sem ar, já sem olhos que pudessem ver-me.

Mas nós pessoas somos com as baratas. Por mais que nos espezinhem, digam que já acabou, incendeiem, congelem, voltamos sempre à tona, como se estivesse escrito algures que pertencemos a uma terra prometida e de difícil encontro, onde a vida pode acontecer tal como um belo dia de sol.
Foi, então, também ali que me reconheci, ultrapassando-me num acto de contrição em que senti que tudo valia a pena para além de uma miserável existência extinta antes da morte.
E voltou a ser ali que, num caminho de regresso, te conheci e me entreguei sem condição, num fim eterna e diariamente adiado. Assim eu quis e quero.

Existem lugares que vivem sozinhos e se impõem muito para lá do que possamos pretender para eles, lugares que nos conduzem sabiamente, mostrando o quão dotados somos para nos vivermos com um sorriso de confiança.
À distância de um passo de tudo o resto, ali, é um desses lugares.