8.10.14

Leitura, iniciativas

Há uns meses li um livro sobre os direitos dos leitores, escrito por Daniel Pennac, que, entre muitas outras coisas, faz a apologia do livro como objecto de liberdade. Liberdade de ser lido, não ser lido, manuseado, deixado quieto e arrumado, ser mal lido, bem lido, lido completa ou parcialmente, ser mal ou bem tratado, enfim, o livro como objecto de prazer, para além do próprio conteúdo, evidentemente, o veículo máximo desse prazer.
O livro de Pennac descontruiu vários preconceitos e ideias feitas que eu tinha sobre os livros, em particular a de que os livros existem para serem lidos de uma ponta à outra, sendo que me senti várias vezes culpado e chateado por ter abandonado livros a meio (se é que lá chegava). O professor e escritor ensinou-me a olhar para os livros com muito maior liberdade e por isso também prazer. Comecei de facto a pegar-lhes sem o assombro com que sempre o fiz e devo dizer que me sinto muito melhor por e com isso.
O mesmo relativamente aos meus filhos, filhos desta geração que, ao contrário do paizinho deles na idade deles, não retiram demasiado prazer em estender-se no chão a ler, antes preferindo naturalmente e sem que façam gala nisso as new tech (apesar de terem os ouvidos cheios com o que lhes digo há anos sem fim). O mesmo relativamente a eles porque Pennac também ensina que, mais do que obrigar a ler (só o conceito apavora-o) e mais do que fazer chantagem com a leitura (dou-te isto ou aquilo ou podes fazer isto ou aquilo se leres), o que importa é criar o prazer da leitura e isso cria-se através da leitura em voz alta. Por isso passei a ler livros em voz alta aos meus filhos, à noite a seguir ao jantar e antes de se deitarem. Fui buscar uma colecção juvenil que o Público editou há já alguns anos e fiz uma pré-selecção que me tem fornecido essas leituras. Actualmente açambarcámos o Oliver Twist, que tratamos com interesse mas também algum desdém de vez em quando, tudo parte do próprio processo de leitura. Pennac diz que não interessa se os filhos rebolam, estão concentrados, descentrados, a brincar com moscas invisíveis e outras tantas coisas que eles fazem para mostrar que são seres individuais com vontade própria. Tudo bem. O que interessa é prosseguir. Também aqui há uma certa dessacralização do processo, o que ajuda enormemente.
Tudo isto a propósito de duas iniciativas que me despertaram a atenção nos últimos dias: a primeira passou-se em Penafiel e teve por fim uma homenagem a Lídia Jorge. Só depois de ler a reportagem percebi que todos os anos, desde há algum tempo, a CM organiza uma semana em que é escolhido um autor que é homenageado em toda a parte e por todos os meios: na biblioteca municipal, na Câmara, nas lojas, nos restaurantes, nos cafés, em tertúlias organizadas e outras espontâneas, etc. Livros desse autor misturados com bolos e cafés, no meio de soutiens em lojas de roupa e coisas bizarras deste tipo. Durante aquela semana, o autor que tiver sido escolhido é rei e senhor. Achei extraordinário que num país que se diz longe da cultura, haja este movimento de aproximação, quase mesmo de miscigenação, com o autor saudado. Penso que se devia replicar por muitos outros sítios.
Outra iniciativa está a decorrer agora e é organizada pela Gulbenkian, chama-se "Dá voz à letra" (http://davozaletra.gulbenkian.pt/) e é destinada a jovens entre os 13 e os 17 anos que têm de escolher um texto de que gostem e gravar um trecho lido por eles. Seguidamente, serão seleccionados alguns que lerão um texto previamente escolhido pela própria Gulbenkian, daí resultando em lugares de pódio, prémios (viagem a Londres, iPads), etc.
A ideia parece óptima e fez-me logo lembrar os ensinamentos de Pennac da leitura em voz alta como veículo para o prazer de ler. Aqui mistura-se propositadamente a leitura e a interpretação, no que anda mão na mão na maior parte das vezes.
Em ambas as iniciativas, há uma desformatação da ideia de leitura e uma consequente aproximação do livro ao dia-a-dia, às pessoas, numa comunicação mais basista e salutar do que aquilo a que nós próprios estamos habituados.
Sem medos ou sacralizações desnecessários, a leitura quando baseada no puro prazer (até de não ler, por paradoxal que pareça), é prazer puro. E muito, mas mesmo muito bom.