Dizem que o amor é um lugar estranho. Não sei, dizem que é. Mas a ser
verdade, não é então só o amor que é um lugar
estranho. A vida também é um lugar estranho. Povoada por pessoas e espectros,
por pessoas que são espectros. Espectros que nos assombram e nos retiram a
confiança na certeza da imutabilidade. (Logo dois logros de uma só vez:
certezas e imutabilidade.) Mas é nessa mentira que gostamos de viver,
agarrando-nos a ela como lapas à rocha.
Os espectros somos nós. De nós próprios. E é deles que temos medo.
Os espectros somos nós. De nós próprios. E é deles que temos medo.
Quem tem medo do lobo mau? Sempre tive. Quando ele aparecia na
história, encolhia-me todo como se me fosse engolir e eu a rebolar para dentro das fauces escuras e medonhas.
Depois, no curso da vida, deixou de haver o lobo mau e os três porquinhos e passaram a existir outros lobos.
Bons nuns dias, em que, coisa estranha, até guardavam o rebanho, e maus
noutros, em que nos engoliam vomitando depois os ossos.
É, a vida é um lugar estranho. Disso não tenho dúvida.
Tão estranho que nos faz dizer e fazer uma coisa num dia e exactamente o seu
contrário no outro a seguir. E tão convictos que estávamos, tão
seguros e prontos a assinar com sangue do próprio sangue. Mas é mesmo assim.
E há as memórias e a
segurança que sentimos ao sofrer da mesma maneira que sempre sofremos, não
porque seja inevitável sofrer mas simplesmente porque esse sofrimento é como um
regresso à casa que conhecemos bem, e todos sabemos que as
casas não têm de ser perfeitas para que nós gostemos delas e lá
queiramos viver. Há desavenças na família, horários a cumprir, obrigações,
coisas chatas para fazer, etc., mas é lá que nos sentimos bem e seguros.
A vida é mesmo um lugar estranho.
Como é possível ter-se
saudades do que não se viveu, do que não se experimentou, só porque acreditamos que estaríamos melhor ali, nesse lugar que não se
conhece e sobre o qual se fantasia? Porque é que o que não aconteceu dói como
se tivesse acontecido, como sulcado fundo na pele curtida pelo sol e vento desses
não-lugares? Será que o desejo se confunde com a imaginação ao ponto de acharmos que
vivemos de facto coisas que não vivemos?
Na lembrança da memória sinto-me mais vivo do que na vida que levo no
dia-a-dia. Tudo é arrancado a ferros, parido com dor e sangue. Tudo custa. Tudo
dói.
Às vezes pergunto-me onde é que está o mapa da vida, para poder segui-lo sem me
perder dentro de mim próprio, tão cheio de pensamentos e palavras, actos e
omissões. Por minha culpa, minha tão grande culpa. Penso que sim de
vez em quando, outras vezes nem tanto.
Depois, depois... Depois, não há nada. Há o presente, ponto. O presente
que é, contudo, enformado e informado por tudo quanto já se viveu, por todas as
expectativas da vida futura, por todas as incertezas no amanhã que vocifera em
contralto aquilo que queremos ser sem nos dar nunca a certeza de o conseguir. Não
há ponto de chegada, apenas de partida, apenas caminho. Apenas isso. Caminho. Só
caminho. A insatisfação do momento só é insatisfação porque o comparamos com o
que estávamos à espera, com um devir mental que nunca existiu nem nunca se
materializou. Se vivêssemos sempre o presente como ele acontece nunca
desesperaríamos, nunca nos sentiríamos defraudados pela vida. Morre alguém e sentimos
logo a perda, como que se atraiçoados pela vida que nos roubou o que tínhamos
programado para ela. É isso que sentimos. Que mal fiz eu a deus? Não fizeste
nenhum mal, é a vida a ser vivida, que inclui a morte como tudo o resto, bom e
mau. Mas ela impõe-se, é muito maior do que nós, consome-nos, vive-nos,
esgota-nos, esperança-nos, faz-nos o que somos e o que jamais seremos.
Olho para trás. Vejo o fio da vida a ser desfiado caprichosamente contra
a minha vontade, muitas e muitas vezes, muitas mais vezes do que aquelas que eu
queria e esperava. Vejo o presente a impor-se sempre, sem dó nem piedade, com
uma arrogância desavergonhada, como só algo muito maior do que nós consegue,
esmagando-nos e reduzindo-nos à nossa infinita insignificância. Lutar é perder.
Mas nós continuamos a lutar, cansados e à beira do fim de tão fartos de nós
mesmos, das nossas vontades, dos nossos sonhos, dos nossos ideais, das nossas realizações e frustrações. Mas
continuamos.
Ontem tive um sonho que me aproximava de quem já não tem ontem nem
amanhã. De quem já não sente dor nem desilusão porque a única coisa que vê e
sente é o acontecer. Sem juízo. É bom sentir que há gente que amamos e que já lá
está, tranquila, encaixada, coberta, serena.
É mesmo um lugar estranho esta vida