14.8.14

Escritos

Dizem que o amor é um lugar estranho. Não sei, dizem que é. Mas a ser verdade, não é então só o amor que é um lugar estranho. A vida também é um lugar estranho. Povoada por pessoas e espectros, por pessoas que são espectros. Espectros que nos assombram e nos retiram a confiança na certeza da imutabilidade. (Logo dois logros de uma só vez: certezas e imutabilidade.) Mas é nessa mentira que gostamos de viver, agarrando-nos a ela como lapas à rocha.
Os espectros somos nós. De nós próprios. E é deles que temos medo.
Quem tem medo do lobo mau? Sempre tive. Quando ele aparecia na história, encolhia-me todo como se me fosse engolir e eu a rebolar para dentro das fauces escuras e medonhas. Depois, no curso da vida, deixou de haver o lobo mau e os três porquinhos e passaram a existir outros lobos. Bons nuns dias, em que, coisa estranha, até guardavam o rebanho, e maus noutros, em que nos engoliam vomitando depois os ossos.
É, a vida é um lugar estranho. Disso não tenho dúvida. Tão estranho que nos faz dizer e fazer uma coisa num dia e exactamente o seu contrário no outro a seguir. E tão convictos que estávamos, tão seguros e prontos a assinar com sangue do próprio sangue. Mas é mesmo assim.
E há as memórias e a segurança que sentimos ao sofrer da mesma maneira que sempre sofremos, não porque seja inevitável sofrer mas simplesmente porque esse sofrimento é como um regresso à casa que conhecemos bem, e todos sabemos que as casas não têm de ser perfeitas para que nós gostemos delas e lá queiramos viver. Há desavenças na família, horários a cumprir, obrigações, coisas chatas para fazer, etc., mas é lá que nos sentimos bem e seguros.
A vida é mesmo um lugar estranho.
Como é possível ter-se saudades do que não se viveu, do que não se experimentou, só porque acreditamos que estaríamos melhor ali, nesse lugar que não se conhece e sobre o qual se fantasia? Porque é que o que não aconteceu dói como se tivesse acontecido, como sulcado fundo na pele curtida pelo sol e vento desses não-lugares? Será que o desejo se confunde com a imaginação ao ponto de acharmos que vivemos de facto coisas que não vivemos?
Na lembrança da memória sinto-me mais vivo do que na vida que levo no dia-a-dia. Tudo é arrancado a ferros, parido com dor e sangue. Tudo custa. Tudo dói.
Às vezes pergunto-me onde é que está o mapa da vida, para poder segui-lo sem me perder dentro de mim próprio, tão cheio de pensamentos e palavras, actos e omissões. Por minha culpa, minha tão grande culpa. Penso que sim de vez em quando, outras vezes nem tanto.
Depois, depois... Depois, não há nada. Há o presente, ponto. O presente que é, contudo, enformado e informado por tudo quanto já se viveu, por todas as expectativas da vida futura, por todas as incertezas no amanhã que vocifera em contralto aquilo que queremos ser sem nos dar nunca a certeza de o conseguir. Não há ponto de chegada, apenas de partida, apenas caminho. Apenas isso. Caminho. Só caminho. A insatisfação do momento só é insatisfação porque o comparamos com o que estávamos à espera, com um devir mental que nunca existiu nem nunca se materializou. Se vivêssemos sempre o presente como ele acontece nunca desesperaríamos, nunca nos sentiríamos defraudados pela vida. Morre alguém e sentimos logo a perda, como que se atraiçoados pela vida que nos roubou o que tínhamos programado para ela. É isso que sentimos. Que mal fiz eu a deus? Não fizeste nenhum mal, é a vida a ser vivida, que inclui a morte como tudo o resto, bom e mau. Mas ela impõe-se, é muito maior do que nós, consome-nos, vive-nos, esgota-nos, esperança-nos, faz-nos o que somos e o que jamais seremos.
Olho para trás. Vejo o fio da vida a ser desfiado caprichosamente contra a minha vontade, muitas e muitas vezes, muitas mais vezes do que aquelas que eu queria e esperava. Vejo o presente a impor-se sempre, sem dó nem piedade, com uma arrogância desavergonhada, como só algo muito maior do que nós consegue, esmagando-nos e reduzindo-nos à nossa infinita insignificância. Lutar é perder. Mas nós continuamos a lutar, cansados e à beira do fim de tão fartos de nós mesmos, das nossas vontades, dos nossos sonhos, dos nossos ideais, das nossas realizações e frustrações. Mas continuamos.
Ontem tive um sonho que me aproximava de quem já não tem ontem nem amanhã. De quem já não sente dor nem desilusão porque a única coisa que vê e sente é o acontecer. Sem juízo. É bom sentir que há gente que amamos e que já lá está, tranquila, encaixada, coberta, serena.
É mesmo um lugar estranho esta vida