6.6.14
Deamblogações matinais
O tema é difícil. É política e juridicamente difícil. Basicamente, trata-se de saber se os tribunais, com especial destaque para o Tribunal Constitucional (TC) pelo facto de fiscalizar a constitucionalidade das normas que existem no ordenamento jurídico português, devem ou não - no limite, podem ou não - interferir nas medidas de política que são tomadas pelo governo.
A primeira vez que me interroguei mais a sério sobre a questão foi quando o encerramento da maternidade Alfredo da Costa foi objecto de uma acção intentada por quem considerou ilegítima tal decisão por atentar contra, designadamente o direito de acesso à saúde. Inclinei-me, então, para achar estranho que um tribunal viesse decidir sobre a existência ou não de uma maternidade (por mais importante e histórica que ela fosse) e, mais do que isso, sobre a organização dos hospitais e unidades de saúde que tinha sido decidida pelo governo. É que a decisão de não deixar fechar a MAC não se resumia apenas à própria MAC, mas sim à organização hospitalar no concelho de Lisboa.
Agora coloca-se a questão de saber se o TC deliberou em termos estritamente jurídicos ou também políticos. No primeiro caso não haveria problema, já no segundo sim. É bom que se perceba que as matérias objecto da decisão do TC são jurídicas, mas também políticas. Saber se se cortam pensões e outras remunerações em vez de aumentar os impostos é uma medida de polícia com efeitos jurídicos evidentes.
Por princípio, estou contra a politização dos tribunais porque isso interfere claramente na repartição de poderes tal como existe e é conforme aos Estados de direito democráticos. Legislativo e judicial não devem interferir um no outro. Mas aqui trata-se de matérias que, de facto, são simultaneamente jurídicas e políticas. Acho, por isso, um disparate não se assumir isso. A Constituição - a nossa como todas as outras - está cheia de opções políticas. Por exemplo, quando se protege ad infinitum o emprego, proibindo os despedimentos sem justa causa, consagrando-se o direito ao emprego como um direito fundamental e básico do cidadão, está-se a definir um modelo de sociedade; quando se diz que a educação e a saúde devem ser tendencialmente gratuitos, está-se a definir um modelo de sociedade. E estes exemplos, como tantos outros espalhados na Constituição, são a prova de que esta assume expressamente determinadas opções em vez de outras, que obrigam os sucessivos governos a respeitá-las, sob pena de verem as leis por si aprovadas ser declaradas inconstitucionais.
É por este motivo que acho que a discussão em torno da decisão do TC está cheia de ruído que não só não vem esclarecer, como contribui para confundir. Dizer-se que o TC decidiu mal porque invadiu a esfera de competência do governo (defendendo o aumento de impostos em detrimento do corte da despesa) é dizer o óbvio: seria possível que tal não acontecesse? Seria possível que, em matérias que têm em si opções políticas evidentes, o TC se limitasse à análise das questões jurídicas? Tenho sérias dúvidas, para não dizer que estou certo que não.
Parece-me claro que das duas uma: ou o TC compactuava de certa forma com as medidas de política tomadas pelo governo, aceitando o rumo que o mesmo decidiu seguir para Portugal e, nesse caso, votava a constitucionalidade das leis em questão, ou assumia uma postura diferente e optava pela inconstitucionalidade. Em qualquer dos casos, parece-me que seria excepcionalmente difícil (impossível, até) o TC evitar o confronto da política e das opões políticas tomadas pelo governo. Em síntese, ou as aceitava ou as recusava. E recusou-as.
Claro que o TC não pode - nem penso que esteja obrigado a isso - assumir expressamente no texto dos acórdãos que tomou certa opção ideológica, porque isso sim, daria azo a uma legítima crítica de invasão do poder legislativo por parte do jurisdicional. Mas a interpretação que faz da Constituição nas diversas matérias que analisa tem por detrás essa ideologia. Em minha opinião, não há como ultrapassar isto e devia, de resto, ser mais ou menos pacífico.
O problema parece-me outro. Pela primeira vez em Portugal, de forma tão evidente, temos um governo que, sistematicamente, tem tomado medidas que roçam a inconstitucionalidade porque atentam contra os princípios que lá se encontram definidos. E essa é a razão pela qual o TC tem sido chamado tantas vezes a pronunciar-se sobre as opções do governo. Mais: como o que lá vai parar para análise é, de facto, muito discutível em termos de obediência ou não à Constituição, é normal que existam muitas decisões de inconstitucionalidade. Mas isto quer dizer que o TC está contra o governo? Não, isto quer dizer que, ao actuar no limite, o governo está-se a pôr a jeito para que as medidas que toma sejam analisadas do ponto de vista da legalidade constitucional e como esta é iminentemente política, parece que o TC está a esquadrinhar a acção do governo, limitando a sua actuação e sendo, em última análise, o responsável pela crise. Mas não é. Quem é - e é sempre - é quem decide a política a seguir. E a única instituição que tem constitucionalmente essa competência é o governo. No mais, é o sistema a funcionar. E bem.