1.5.14
Sempre.
Naquele sítio está-se bem, com pouca gente e com um conforto inversamente proporcional ao tamanho. Ontem.
Reparamos numa multidão à porta. Tudo gente da mesma gente. Conheço várias caras, nenhum coração. Não gosto e percebo logo o que é. Entramos. Alguém se esqueceu de ocupar uma das poucas e pequenas mesas. Sentamo-nos. O ambiente é de festa, alguém faz anos. Já passou esse momento, obrigado. Talvez tenham escorrido umas duas horas desde o início. Já dá para notar. Sentamo-nos e pedimos. Ao lado há um ambiente que não envolve nem aconchega, apesar de dominar. Domina pelas gargalhadas histriónicas, pelo tom das vozes demasiado alto, pelas poses estudadas.
Abstraímos sem curiosidade. Já vimos aquilo muitas vezes e não interessa. Amigos não empatam desconhecidos. Já desconhecidos podem importunar amigos. Mas não é o que acontece.
Encontramos uns amigos estrangeiros. Boa gente. Sentam-se quase ao colo e começamos a conversar, saindo dali para outros lugares.
Aos poucos o ambiente vai-se impondo. Num sítio em que não é permitido fumar, cheira a charro e a tabaco. Vêem-se cigarros acesos sem pudor, apesar dos pedidos feitos pelos empregados para serem apagados. Fuma-se muito. Estou num sítio difícil, numa espécie de istmo que prolonga a mesa quase a ligando ao balcão. Sou espectador involuntário das constantes idas à casa de banho. Muitas por muita gente muitas vezes as mesmas e outras diferentes. Não pára.
O ambiente aumenta de intensidade. Como se alguém aumentasse devagar mas incessantemente o volume. Ao nosso lado, um dos amigos fala com uma miúda que eu digo que não tem dezoito anos. Mas tem. Parece que são vinte e quatro, embora não pareça. Parece que é mas não parece que é. A cara e o corpo são de uma eterna juventude que já perdeu, vou eu percebendo pelo que diz e o que faz. Alguém a chama como se não a visse há vários anos. Mas estiveram há menos de três minutos a falar com as caras coladas. Vai mais um autocarro para a casa de banho. Pouco depois o som da sala aumenta um pouco. Percebo que temos de nos esforçar mais para ouvirmos e sermos ouvidos. A nossa pacatez e consciência contrasta com a excitação cavalgante à nossa volta. Risos, gargalhadas, abraços, poses, beijos, movimentos rápidos quando já não se consegue aguentar o tempo da viagem à casa de banho e o pó vai fazendo cair a vergonha. Não que ela alguma vez tenha sido muita.
De repente aparece alguém e segreda ao ouvido uma coisa qualquer. Alguém que devia andar noutros sítios com outra gente mas que está ali de corpo. Quanto à alma, não lha conheço.
Já chega. Fico triste de ver esvanecer-se uma barreira etária para mim evidente. Crianças de vinte anos não deviam miscigenar com pessoas trinta anos mais velhas estas vivências, desta forma. Não é justo nem para uns nem para outros. Mas o pó não tem idade. Não há crianças nem adultos. Há corpos. Pouco ou nada mais. As almas essas não estão ali e eu não sei onde estão.
Fomos. Deixamos um ambiente prestes a rebentar como uma garrafa cheia de gás depois de ser muito agitada. E no caminho ponho-me a pensar em tudo aquilo, no que será e como será. Com aquela gente, aquelas e outras gentes como aquelas. Será mesmo verdade tudo aquilo?
Não acredito. Não pode haver verdade na coca. Isso toda a gente sabe. Mesmo aquela gente. Quero eu acreditar.