
Vi um filme magnífico. O Lado Selvagem, ou Into the Wild, no título original. Baseado no que de facto aconteceu entre 1990 e 1992, é a história de um rapaz de classe média americana, recém-licenciado, que renuncia a uma carreira e a uma vida pré-determinadas e opta por virar costas à sociedade, passando a viver à sua margem.
Durante o filme, várias coisas me interpelaram.
Primeiro, o facto em si. A opção pela renúncia à sociedade de consumo e ao consequente materialismo, com tudo o que isso implica: desinstalação, perda de referências, isolamento, incompreensão.
Segundo, os motivos. Quantos de nós não cresceram numa liberdade tão apenas aparente, totalmente (ou quase totalmente) espartilhada pelas regras sociais e pelas consequentes expectativas que elas impõem? Quantos de nós não viram pais e familiares mais chegados sofrerem para nos dar um futuro melhor (melhor?) do que eles próprios tiveram, ainda que o mesmo tenha sido bom e muito melhor do que aquilo que eles próprios algum dia sonharam que iriam ter? Quantos de nós, verdadeiramente, não se sentiram obrigados a corresponder a um depósito imenso de esperança e angústia pelo cumprimento desse futuro prometido, como se de o samadi se tratasse?
Foi essa ideia que Christopher MCandless (ou Chris Supertramp como passa a chamar-se a si próprio e a apresentar-se aos outros) quis desconstruir, provando que a felicidade não está obrigatoriamente (e apenas) relacionada com bens materiais, mas sim com a procura do que cada um quer ser e viver.
Terceiro, a coragem. A coragem em enfrentar os seus sonhos e sacrificar-se para o conseguir. Enfrentar a solidão e a frustração, mas também as separações das várias pessoas que a ele se ligaram afectivamente e que com ele se vão encontrando ao longo da viagem que faz. Não que ele não goste delas, mas sabe que no momento que a elas se ligar definitivamente, perde também definitivamente o seu sonho.
Quarto, o sonho. E aqui é evolutivo. O sonho começou pela desligação com o mundo tal qual ele o conhecia, e foi evoluindo à medida que a viagem avançava, até se corporizar na ideia de ir viver para o Alaska, sozinho no meio da natureza.
O sonho é a capacidade de projectar mentalmente anseios e ilusões que contribuem decisivamente para nos fazer avançar. Quantos de nós já não quiseram tornar sonhos realidade? MCandless tornou.
Quinto, a obstinação. Ele é, ou melhor, foi, obstinado pelos seus ideais. No entanto, a sua obstinação não era contra ninguém, mas a favor de um projecto de vida. Mesmo as pessoas que propositadamente pôs de lado – e a irmã joga aí um papel fundamental – foram vítimas da própria opção que ele tomou e não tanto de uma acção egoísta de um eventual afastamento motivado por tristeza ou angústia.
Sexto, a confrontação. Por fim, MCandless percebe que não há felicidade sem partilha. Ao fim de vários meses sozinho no Alaska percebe que os laços relacionais são determinantes para a (sua) felicidade. Mas aí é tarde de mais. O único contacto que tem com o mundo é através dos aviões que vão passando lá longe, no alto do céu. De resto, está preso no Alaska e é confrontado com essa realidade precisamente quando decide regressar aos seus.
Fica, porém, a dúvida de saber se verdadeiramente ele pretendia regressar à cidade e à vida que anos antes havia deixado. Pessoalmente penso que não. O que ele concluiu foi que precisava de pessoas para ser feliz, não necessariamente das pessoas com quem havia partilhado a vida antes de tomar a opção de as abandonar.
Sétimo e último, o que fica por dizer. O filme vive muito à conta disso. Há muito que fica por dizer, competindo a cada um de nós interpretar esses silêncios.
Também aqui fica muito por dizer. Apenas referir que vale a pena ver e ouvir. Sim, ouvir, porque para além de fabulosos diálogos, a banda sonora é óptima, ou não fosse composta por Eddie Vedder.
Vale e muito.