9.12.16

Deamblogações vespertinas



Um dia, há já algum tempo, uma pessoa amiga disse-me que na escola (católica) dos filhos, aonde se dá particular importância aos clássicos, haviam proibido uma tradução ou da Odisseia ou da Ilíada - já não me recordo - porque a mesma era da autoria de um homossexual. Não me soube dizer quem era o autor, mas eu desconfiei de imediato de quem se tratava porque sabia que (i) Frederico Lourenço era um grande classicista e (ii) era homossexual assumido e sem preconceitos. Nunca consegui confirmar o que, caso tenha existido, foi uma vergonhosa censura.
A primeira coisa que li de Frederico Lourenço foi um tríptico designado "Pode um Desejo Imenso" (composto por um primeiro tomo com esse nome, um segundo chamado "O Curso das Estrelas" e um terceiro "À Beira do Mundo"). Vi ali uma auto-biografia mais ou menos evidente, não apenas pelo percurso académico e profissional da personagem principal, mas também pela sua orientação sexual. Gostei mesmo muito quer do estilo, quer da perspectiva assumida pelo narrador relativamente à evolução de toda a estória.
Recentemente, comprei e comecei a ler a Bíblia traduzida pelo mesmo autor, a qual é a primeira traduzida directamente do grego, sem passar pelo latim. Nela Frederico Loureço assume, outra vez diria, uma posição neutra - que aliás anuncia como premissa - a qual se denota tanto pelo vocabulário escolhido, como por opções de vária ordem (como, por exemplo, a (não) utilização de maiúsculas em palavras que a Igreja costuma escrever desse modo). De permeio e sempre numa tentativa de melhor explicitar o sentido da obra, o autor faz uso de notas e comentários através dos quais conseguimos perceber sentidos habitualmente ocultos e pouco abordados pela "ordem vigente".
Independentemente da lógica da abordagem, esta "versão" da Bíblia é, logicamente, uma lufada de ar fresco sobre as interpretações do livro mais estudado do mundo, contribuindo assim para um aprofundamento dos sentidos e, até, das crenças de cada um. A talhe de foice, diga-se que é uma empreitada gigantesca aquela a que o autor se propôs: para além do primeiro volume já publicado, outros quatro se seguirão até 2020 (!).
É evidente por tudo isto e muito mais que o Prémio Pessoa lhe assenta muito bem. E, já agora, embora eu tenha bem noção de que em aparência este tipo de prémios não vale nada para quem está contra quem o ganhou (já se fosse ao contrário, o prémio seria relevantíssimo), é uma estalada de luva branca para quem tentou e porventura conseguiu discriminar alguém em função da sua, aliás legítima, orientação sexual. E isso também é de aplaudir.