26.11.14

Sócrates, inevitavelmente


Declarações prévias: não gosto de Sócrates (nunca gostei, mesmo em 2005, quando ganhou pela primeira vez as eleições) e tenho a convicção de que existem factos ilícitos praticados por ele ao longo dos anos.
Dito isto e tentando ser objectivo, há coisas neste episódio da sua detenção que me espantaram. Segue a lista:

1. A indignação de alguns sobre a fuga de informação que permitiu a dois órgãos de comunicação estarem no aeroporto quando o ex-PM foi detido: parece que foi a primeira vez que existiram fugas de informação. Por outro lado, sem discutir que seria melhor que não existissem fugas de informação, pergunto-me o que a presença dos referidos media no aeroporto contribuiu para a perturbação do inquérito/paz social/juízos públicos/ etc., quando é certo que Sócrates foi detido de imediato e presente ao juiz de instrução para o decurso do processo, sendo a forma da detenção o menos importante no meio do resto;

2. A indignação das mesmas pessoas por Sócrates ter sido detido logo no aeroporto: mas por que motivo tal não deveria ter acontecido? Acaso alguma das pessoas que vi pronunciar-se indignada sobre isto adiantou alguma explicação válida para assim não ser? Não. Uma detenção desta natureza é contra a lei? Não. Atenta contra algum direito fundamental? Também não. Ocorre com muita ou alguma frequência? Não sei, mas basta que o juiz de instrução esteja convencido de que a não detenção naquelas circunstâncias pode perturbar o inquérito, para a dever ordenar. Refira-se que semelhante conclusão ocorre em qualquer outra circunstância. Ou será que quem se indignou com isto considera que existem locais/horas/momentos mais adequados para a detenção de suspeitos?

3. A indignação com a falta de informações prestadas pelo juiz/tribunal sobre o andamento dos interrogatórios: quem tal diz parece confundir muita coisa, desde logo que o tempo dos tribunais não é nem pode ser o tempo da informação para o público. Uma coisa com a qual concordo é os tribunais (especialmente os que tratam de matérias que podem ter eco jornalístico e social) estarem preparados para acolher os media (já lá vamos), outra bem diferente é pretender que estes sejam alimentados ao ritmo a que hoje em dia circulam as notícias. Jamais o juiz de instrução deveria estar preocupado com a (ainda assim, compreensível) sede de informação dos jornalistas, desse modo fazendo perigar os actos judiciais que garantem a legalidade do processo.

4. A acusação de que este processo (à semelhança de outros) constitui o que chamam de "espectáculo mediático", "circo mediático", etc.: creio com sinceridade que quem o diz está a confundir a sua mágoa, frustração ou tristeza com o que aconteceu (a detenção do ex-PM) com as características inerentes ao que aconteceu. Vejamos: seria, nos dias de hoje, possível em qualquer país democrático e com imprensa livre que um ex-PM fosse detido sem se saber e, mais do que isso, sem se montar um verdadeiro "circo mediático" à volta? Seria possível pensar em ter Sócrates detido, fosse no aeroporto, fosse noutro sítio qualquer, tê-lo presente ao juiz de instrução, decorrer o interrogatório e determinar a sua prisão preventiva ou qualquer outra medida de coacção, tudo no segredo dos deuses? Acho que ninguém de boa fé responderia afirmativamente a estas perguntas. Mas, então, avance-se ainda mais: seria possível que, sabendo então os media da detenção, dos interrogatórios, etc., publicassem essas notícias de forma calma, sem ruído, sem especulações, sem conclusões antecipadas, sem comentários? É evidente que não! É evidente que tudo isto seria absoluta e totalmente impossível. Ora, acusar-se o poder judicial ou, implicitamente, o Governo de mediatizar a justiça, tornando-a refém do grande público é, neste caso, patético, é estar a confundir um whishful thinking (que tudo isto não estivesse a acontecer, o que é legítimo) com as indiossincrasias próprias do caso ou, no limite, é estar eivado de má fé.

5. A afirmação de que existe uma desigualdade de armas entre o arguido e a acusação: nesta matéria, vi uma única pessoa colocar a questão como deve ser colocada - Pacheco Pereira. Disse o que ninguém ousa dizer: todos nós temos uma convicção íntima sobre Sócrates, a de que é culpado ou a de que é inocente, mas isso não deve impedir que percebamos que o processo decorre, para o bem e para o mal, nos termos da lei e que o juiz cumpre a lei normalmente, melhor ou pior, como diariamente sucede em centenas de casos por este país fora. O processo penal tem regras que são as que são e, neste domínio, Sócrates é efectivamente igual a qualquer outro arguido, como tal aplicando-se-lhe o bom e o mau do processo. Quem faz processo penal diz normalmente que o mesmo tem, essencialmente, duas fases: a da acusação e a da defesa. Por enquanto está-se na fase da acusação, chegar-se-á à fase da defesa. No meio disto permite-se que os arguidos sejam detidos preventivamente. Pois foi o que aconteceu. Isto é violar algum direito? Não me parece. Não reparei que as pessoas que fizeram esta afirmação tivessem referido que o arguido teve a possibilidade de consultar o processo (ainda que sumariamente, como - mal ou bem, é discussão diversa) acontece com todos os arguidos em todos os processos existentes. E por fim está consagrada a possibilidade de recorrer da medida de coacção aplicada. Isto é violador de algum direito? Creio que não.

6. A afirmação de que a justiça deve saber lidar com os media: totalmente de acordo. É indecorosa a forma como os jornalistas estavam (des)arrumados no DCIAP, assim como é injustificável que não haja uma assessoria de imprensa nomeada pelo tribunal (nem que fosse apenas para processos de natureza semelhante) e que venha fazer declarações públicas e contundentes, desse modo eliminando o ruído latente. Isso é verdade, mas confundir este facto, aliás evidente, com falta de garantias do arguido ou juízos erróneos por parte do tribunal, parece-me ilegítimo.

7. A afirmação de que Sócrates é um cidadão igual a qualquer outro: não é verdade e quem não quiser ver isto não percebe (ou não quererá perceber) muita coisa. Sócrates não é igual a um qualquer cidadão normal, rico ou pobre, não é isso que interessa, que não se movimenta na esfera do poder político, económico e, até, judicial. Lamento dizer, mas não é qualquer cidadão que vai almoçar com o um ex-PGR ainda que seja para falar de livros e viagens. Quase ninguém neste país foi PM (!). Quase ninguém é ou  foi, sequer, ministro ou secretário de Estado. Quase ninguém foi ou é comentador político (apesar de haver muitos). Quase ninguém, pelo menos estatisticamente, se movimenta ou movimentou nestes meios e conhece os seus protagonistas. Dizer que Sócrates é igual a qualquer um de nós é, por isso, um verdadeiro ultraje. A lei que se lhe aplica é, de facto, a mesma, mas as circunstâncias a ponderar são, indiscutivelmente, diferentes. Por isso, dizer que a prisão preventiva é um excesso e que nos países civilizados a mesma só "em casos absolutamente excepcionais" (gostava que Clara Ferreira Alves dissesse quais são) é utilizada é atirar cá para fora um soundbyte populista e demagogo. Não será o alegado envolvimento de um ex-PM em situações suspeitas e graves um desses casos? Talvez seja, talvez seja...

E, para finalizar, digo rapidamente porque estou intimamente convencido que Sócrates é culpado: como é que alguém que, não tendo fortuna conhecida (à parte a explicação algo patética e nunca devidamente fundamentada do volfrâmio do avô materno), que entrega desde o início da década de 90 as suas declarações de rendimento ao TC, sem nunca ter revelado um ganho significativo, que sempre teve uma vida pública, consegue morar onde mora e, de repente, dar-se ao luxo de ir viver para o seizième numa casa de milhões de euros, apenas para estudar Sciences Po, mais sustentando um dos filhos, fazendo, segundo se sabe, uma vida desafogada, sem assegurar um rendimento mensal adequado? Enfim, cada um que enfie a sua própria carapuça.

Que se cumpra a lei. O facto de estar intimamente convencido que Sócrates é culpado não me tolda o espírito.